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'À frente do seu tempo': quem foi Kal Manequin's, mulher negra que abriu caminhos na moda em Sorocaba

Maria Claudete Ribeiro dedicou a juventude a se profissionalizar como modelo. Aos 20 anos, obteve registro profissional na área e abriu a agência 'Kal Manequi...

'À frente do seu tempo': quem foi Kal Manequin's, mulher negra que abriu caminhos na moda em Sorocaba
'À frente do seu tempo': quem foi Kal Manequin's, mulher negra que abriu caminhos na moda em Sorocaba (Foto: Reprodução)

Maria Claudete Ribeiro dedicou a juventude a se profissionalizar como modelo. Aos 20 anos, obteve registro profissional na área e abriu a agência 'Kal Manequin's', em Sorocaba (SP) Arquivo pessoal A primeira sorocabana a obter registro profissional de manequim foi uma mulher negra: Maria Claudete Ribeiro. Nascida em 1º de fevereiro de 1955, ela conquistou a certificação em julho de 1982. Com o documento em mãos, adotou o nome artístico Kal Manequin's, que mais tarde batizou também uma agência de modelos, um bloco carnavalesco e, posteriormente, uma rua da cidade. Foi ainda na infância que Kal começou a demonstrar interesse pelo mundo das passarelas, conta a irmã mais nova da modelo, Glaucia Aparecida de Barros. 📲 Participe do canal do g1 Sorocaba e Jundiaí no WhatsApp "Ela estudou no Sesi da Além Ponte. Em dia de festa, com apenas sete anos, lá estava a menina dando pequenos passos em eventos na passarela da escola. Depois, foi para a Escola [Estadual] 'Senador Vergueiro', onde estudou até a 4ª série do primário. Interrompeu os estudos para fazer um curso de manequim em uma escola em São Paulo", relata Glaucia. Na juventude, Maria Claudete trabalhou como empregada doméstica, em São Paulo, enquanto ajudava nas despesas da família e custeava o sonho antigo: ser modelo de passarela. LEIA TAMBÉM: Racismo na infância deixa marcas profundas e desafia pais, alunos e educadores Apenas 2,6% dos indígenas que vivem em Sorocaba falam idioma originário, aponta Censo Dia da comunidade libanesa no Brasil: famílias de descendência árabe celebram a cultura do Líbano no interior de SP "Tinha uma mulher que estava mudando para lá [São Paulo] e ofereceu para minha irmã ir junto. Só que chegou lá, a mulher queria que ela se prostituísse, daí ela não aceitou, mas também não contou nada para nossa mãe. Arrumou um lugar para morar em uma favela, um emprego, começou a trabalhar e fazer o curso", explica a irmã. Maria Claudete Ribeiro, a 1ª manequim profissional de Sorocaba (SP), rompeu barreiras na moda nas décadas de 70, 80 e 90 Arquivo pessoal Morando sozinha em São Paulo, Kal também trabalhou em uma fábrica de cabides e chapéus. Na época, trocava cartas com a mãe, Diva Ribeiro, e chegou a relatar em uma delas as dificuldades que enfrentava enquanto buscava realizar seu sonho. "Contava que às vezes não tinha o que comer. Usava o dinheiro que ganhava para pagar o curso de manequim." Maria Claudete Ribeiro, a Kal Manequin's, foi a 1ª mulher a obter registro profissional de manequim em Sorocaba (SP), segundo a família Arquivo pessoal Os esforços da jovem renderam frutos. Quando voltou para Sorocaba, logo após se formar no curso, Kal foi convidada a dar aulas de moda em cidades na região. Foi nesta época que ela foi se tornando conhecida no meio do entretenimento e começou a aparecer em colunas sociais dos jornais. "Com o registro profissional em mãos, ela abriu a escola Kal Manequin's, a primeira escola de manequins. Foi aí que Maria Claudete virou a Kal. Na escola, ela ensinava técnicas de passarela para quem, assim como ela, queria seguir carreira de modelo." Desde que inaugurou a escola, passou a se envolver com a organização de desfiles e concursos de beleza, como 'Bonequinha do Café', 'Miss Colored', 'Manequim do Ano', 'A mais Bela Estudante', 'Negro Lindo', 'Garota e Garoto Copa', entre muitos outros. Jornais da época destacavam a atuação de Kal nas passarelas em desfiles para marcas e lojas Arquivo pessoal Bloco Kal Manequin's Com a escola, veio também, um tempo depois, a criação do bloco carnavalesco que carregava o mesmo nome da empresa. O bloco contava com a participação de alunos e amigos da sorocabana, que estava cada vez mais inserida na vida social da cidade. "Dedicou boa parte de sua vida ao carnaval sorocabano, convertendo o bloco em escola de samba e lutando para que o carnaval de rua na cidade continuasse recebendo apoio do poder público, especialmente depois que a prefeitura, em meados da década de 1990, resolveu cancelar a verba destinada a esse tipo de evento", explica o historiador Carlos Carvalho Cavalheiro em seu livro "Nossa Gente Negra". Entre desfiles, eventos, carnavais e realização de objetivos profissionais, Maria Claudete também se casou e se tornou mãe. "Ela casou em 1989 com Edson dos Santos, depois de cinco anos de namoro e 15 de noivado. O casamento foi na Catedral de Sorocaba, realizado pelo Conêgo João Santucci. Na sua primeira gravidez, esperou gêmeos, mas infelizmente um dos bebês nasceu morto. Depois de Alexandre, seu primogênito, Kal ficou grávida novamente de gêmeos. Vieram Diva Helena, em homenagem às avós, e Edson, em homenagem ao pai", conta Glaucia. Durante a segunda gestação, em 1994, Kal ainda desfilou pela escola de samba. Ela morreu em 17 de junho de 1999, vítima de câncer de mama. Edson Ribeiro dos Santos tinha apenas seis anos quando isso aconteceu. Hoje com 32 anos, ele guarda poucas lembranças do período em que conviveu com Maria Claudete. A maioria delas ressurge quando vê fotos antigas ou conversa com familiares. "Lembro que participei de alguns concursos, de teste para televisão... Mas eu lembro por fotos. Quando vejo a foto, me recordo do momento. Lembro dessa correria que a gente ia para São Paulo junto com ela para participar de programas de televisão. Ela tentou nos colocar no ramo de entretenimento, eu e meu irmão, minha irmã não chegou a participar tanto", conta Edson. Os filhos não seguiram os passos da mãe e se afastaram do entretenimento após a infância. Ainda assim, apesar dos rumos diferentes, Edson reconhece e valoriza a força de Maria Claudete ao desbravar um universo que pouco permitia a entrada de pessoas negras. "Por ser uma pessoa negra, se não correr atrás do seu objetivo e não fizer o seu melhor, você não vai estar em uma posição de destaque e, mesmo assim, é muito difícil. Você tem que fazer muito mais do que uma pessoa branca. Pensando naquela época ainda, que, se hoje é difícil, antigamente era bem mais fácil, se ela fez sucesso, foi porque de alguma forma ela fez dar certo. Agora, como ela conseguiu a gente não sabe", pontua o filho. Moda, samba e resistência: quem foi Kal Manequin's, ícone sorocabano Arquivo pessoal Destaque nas passarelas Vaidosa, fotogênica e boa comunicadora, Kal tinha samba no pé e dominava a arte de desfilar. Mesmo sem a estatura considerada ideal para as passarelas, conseguiu se destacar. "Maquiagem para ela não podia faltar. Muito vaidosa. Ela tinha acho que 1,70 metro, por aí. Ela conseguiu se destacar, mesmo não sendo tão alta, porque naquela época já não havia muitos modelos aqui em Sorocaba", relembra o filho. Mesmo sem a estatura considerada ideal para as passarelas, Kal conseguiu se destacar e participou de diversos desfiles para lojas e marcas Arquivo pessoal Foi em um desses eventos realizados em clubes de Sorocaba que Maria José de Almeida Lima, a Mazé Lima, de 81 anos, conheceu Kal. Segundo ela, a empresária era muito bem relacionada com o comércio local, o que facilitava a conquista de eventos para sua agência. "Sorocaba tinha como ponto de encontro da comunidade negra o Clube 28 de Setembro. Foi lá que eu conheci a Kal, em 1981, bem jovem, e já com muita vontade de trilhar esse caminho de manequim. Ela estava à frente do seu tempo, porque até hoje você não vê muitas mulheres negras voltadas para esse tipo de trabalho. E a Kal, já naquela época, era muito bem relacionada com as lojas da cidade. Fazia desfiles, desfilava. Eu a conheci no clube e acompanhei toda a sua carreira e a vida cotidiana", comenta Mazé. Outra Maria que conheceu Kal na década de 1980 foi Maria de Jesus Queiroz, que também se tornou amiga da modelo. "Trabalhávamos na mesma área em Sorocaba e região. Quando eu iniciei na área de desfiles de moda, que eu dava curso, na década de 1980, a Kal já trabalhava nessa época. Ela tinha um grupo de jovens com quem ela trabalhava. Ela sempre foi muito da comunidade. Lutou muito para ter o espaço dela. Era uma batalhadora", relembra Maria Queiroz. Cerca de três meses após sua morte, Kal foi homenageada pela cidade onde brilhou. Seu nome de batismo, Maria Claudete Ribeiro, passou a identificar uma das vias do bairro Jardim J. S. Carvalho. Glaucia destaca que a irmã teve o privilégio de contar com amigos e familiares que sempre a apoiaram a seguir seus objetivos profissionais e pessoais. Em troca, Kal deixou um legado de amizade, coragem e alegria. "Kal teve sorte de contar com a família e muitos amigos maravilhosos. Partiu feliz, porque conseguiu alcançar e transmitir os seus objetivos que tanto almejava. Plantou, colheu e deixou frutos e seus conhecimentos. Fez o último desfile na passarela desta vida. Ela foi e sempre será muito especial em nossas vidas, o tempo jamais apagará os momentos que esteve entre nós. Sua lembrança permanece guardada em nossa mente e em nosso coração." Kal foi homenageada pela cidade onde brilhou. Seu nome de batismo, Maria Claudete Ribeiro, passou a identificar uma das vias do bairro Jardim J. S. Carvalho Reprodução/Google Street View Veja mais notícias da região no g1 Sorocaba e Jundiaí VÍDEOS: assista às reportagens da TV TEM