Cartas de alforria revelam história da luta pela liberdade de escravos em Sorocaba
Cartas de alforria revelam história em Sorocaba Fabrício Rocha/g1 Existem memórias que, por influência histórica - seja ela positiva ou não -, o tempo nã...

Cartas de alforria revelam história em Sorocaba Fabrício Rocha/g1 Existem memórias que, por influência histórica - seja ela positiva ou não -, o tempo não consegue apagar. Em casos delicados, como a escravidão, revisitá-las sempre que possível é uma forma de compreender e refletir sobre as problemáticas socioculturais que, até hoje, afetam o convívio de povos inteiros. Para celebrar o Dia Internacional para Relembrar o Tráfico de Escravos e sua Abolição, que acontece neste sábado (23), o g1 conversou com o historiador Diogo Comitre, que explica sobre como a região de Sorocaba (SP) lidou com o período da abolição e os impactos causados na sociedade escravocrata. 📲 Participe do canal do g1 Sorocaba e Jundiaí no WhatsApp De acordo com o historiador, a publicação da Lei Áurea, que representa a libertação definitiva dos escravos e foi assinada em 13 de maio de 1888 pela Princesa Isabel, foi vista pela população sob duas óticas: a dos escravos e a dos proprietários. "Do ponto de vista das pessoas subjugadas pela escravidão, existem diversos relatos escritos e orais que mostram comemorações. Aloisio de Almeida fez a obra 'Memória Histórica sobre Sorocaba', que faz referência às festas que aconteceram na região. Era clima de festa entre pessoas que lutaram com todas as suas forças para serem livres", comenta. No entanto, como esperado, as recepções eram extremamente contrastantes. Para o restante da sociedade, a assinatura da lei foi vista com bastante preocupação. "Eles tentaram, a todo custo, assegurar a submissão dessas pessoas. Mesmo após o fim da escravidão, houve a obrigação de prestação de serviço durante um ano, que estava imposta e registrada nas cartas de alforria", explica. O Gabinete de Leitura Sorocabano, localizado próximo à Praça Fernando Prestes, preserva a memória com cartas de alforria dentro de um acervo. Um dos documentos, assinado em 1887, dá "liberdade" a uma jovem de apenas 22 anos. Veja na imagem abaixo: Cartas de alforria usadas para conceder liberdade aos escravos de Sorocaba Fabrício Rocha/g1 Mesmo com a preservação dos documentos históricos, Diogo acredita que a cidade não possui políticas públicas que valorizem a história da cidade em um geral de forma eficiente. Apesar da importância, o tema da escravidão também é "deixado de lado" pelo poder municipal. "Eu considero que a cidade não valoriza isso de uma forma política. Muito do nosso patrimônio histórico encontra-se abandonado ou entregue a usos que atendem mais a interesses comerciais do que relacionados a preservação da memória. Não é diferente neste tema, já que não possuímos investimentos significativos voltados para a área", lamenta. Na visão do historiador, Sorocaba teve um papel crucial na soltura do povo escravizado. Ele pontua que, à época, houve diversos movimentos abolicionistas que contribuíram para o sucesso na luta da emancipação. "As pessoas escravizadas foram protagonistas na luta pela emancipação e Sorocaba esteve inserida neste processo pois, aqui, observamos diversas formas de resistência contra a escravidão. A luta de todo o país foi um fator muito determinante", opina. Apesar de todo o peso da luta abolicionista na região, Sorocaba passou um bom tempo adequada ao regime de escravidão. Ao g1, o historiador conta que os impactos começaram a muitos quilômetros de distância, ainda no tráfico transatlântico de povos africanos. "O tráfico de escravos por meio de navios impactou bastante no cotidiano das cidades do interior paulista em um geral. A mão-de-obra escrava e africana era utilizada por membros da elite local, e a presença dos escravos em nossa cidade foi acompanhada de atos de resistência que impactaram as vilas, como fugas e quilombos na região", detalha. Mesmo após 137 anos da assinatura da Lei Áurea, ainda há quilombos - termo usado para se referir às comunidades formadas por escravos que fugiram das propriedades - resistindo nas cidades do entorno de Sorocaba. Entre eles, estão o Quilombo Cafundó, em Salto de Pirapora (SP), e a Comunidade Camargos, em Votorantim (SP). "As pessoas escravizadas, mesmo com todas as limitações impostas pelo contexto de opressão que estavam submetidas, participavam ativamente da construção de suas próprias histórias. Ou seja, estas pessoas eram ativas na luta pela liberdade e a fuga e a constituição de quilombos era uma das principais formas de resistência segundo as fontes que possuímos", destaca. Diogo Comitre é pesquisador e professor de história Arquivo pessoal Segundo Diogo, a forma que a história é contada é, na maioria das vezes, considerada problemática. Isso acontece por, naturalmente, ela ser contada em uma versão considerada elitista. "O grande problema é que a tradição é contar a história pela lógica da elite e dos vencedores. Ela produz representações do subalternos partindo do ponto de vista deles, gerando a necessidade de pesquisas que libertem os oprimidos das visões elitistas do passado", diz. "Nós temos diversas formas de registros de resistência por parte das pessoas escravizadas da nossa região. A fuga, a revolta e os atos de violência contra os senhores de escravos são nítidos e marcados. Não podemos reproduzir a imagem de que as pessoas escravizadas eram passivas diante do contexto de dominação imposto pelos senhores", completa. O profissional continua dizendo que, segundo a linha de pensamento do neurocientista Joseph E. LeDoux na época do Holocausto, a política do esquecimento é uma patologia moral e, por isso, defende o dever de memória como possibilidade de reparar sofrimentos impostos à comunidades no passado. "É nesta perspectiva que o Dia Internacional para Relembrar o Tráfico de Escravos e sua Abolição se torna tão importante. Relembrar o horror representado pelo tráfico e o papel do Estado na manutenção é fundamental para compreendermos o sofrimento causado às pessoas escravizadas. Relembrar é reparar abordagens", opina. "Reconhecer tudo isso deixa claro a necessidade de reparação por parte do Estado brasileiro, que tem a obrigação de formular políticas afirmativas consistentes para que a população afrodescendente possa superar os traumas e mazelas gerados pelo tráfico negreiro", finaliza. Gabinete de Leitura Sorocabano Reprodução/Instagram *Colaboraram sob supervisão de Gabriela Almeida Veja mais notícias da região no g1 Sorocaba e Jundiaí VÍDEOS: assista às reportagens da TV TEM Entenda a diferença entre racismo e injúria racial