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Especialista em cultura coreana vê desumanização e 'fetiche de raça' em site que vende encontros iguais a dramas coreanos

Site de “encontros tipo dorama” vira alvo de investigação A pesquisadora Daniela Mazur, pós-doutoranda na Universidade Federal Fluminense e especialista ...

Especialista em cultura coreana vê desumanização e 'fetiche de raça' em site que vende encontros iguais a dramas coreanos
Especialista em cultura coreana vê desumanização e 'fetiche de raça' em site que vende encontros iguais a dramas coreanos (Foto: Reprodução)

Site de “encontros tipo dorama” vira alvo de investigação A pesquisadora Daniela Mazur, pós-doutoranda na Universidade Federal Fluminense e especialista há 15 anos em cultura coreana, criticou o uso do imaginário dos dramas coreanos pelo site Kdramadate, que vende encontros iguais às séries asiáticas produzidas na Coreia do Sul, incluindo passeios românticos no Parque Ibirapuera. O g1 mostrou que o site passou a ser acompanhado de perto pelo Consulado da Coreia do Sul e pela Associação Brasileira de Coreanos por causa da preocupação com exploração sexual e com o uso da imagem de coreanos (veja mais abaixo). Mazur afirma que o caso expõe camadas profundas de racialização, orientalismo e fetichização de homens asiáticos, especialmente quando esses elementos são transformados em produto. Ela explica que o interesse por masculinidades coreanas foi amplificado por mais de uma década de expansão da cultura pop da Coreia do Sul no Brasil. “O que a gente está vivendo aqui no Brasil é um crescimento que não é de hoje. A gente está falando, desde o início dos anos 2010, de um consumo da cultura pop sul-coreana, através da onda coreana, que é um fenômeno.” Segundo Mazur, as produções românticas coreanas, populares nas plataformas de streaming, ajudam a construir um imaginário específico de “homem ideal”. “Esse lugar, desse homem coreano enquanto um homem ideal, tem sido bastante circulado através da força de globalização desses produtos.” Mas, para ela, o ponto central é que esse “homem ideal” se torna racializado e acaba sendo consumido como fantasia. “Porque o que a gente está debatendo com esse caso do Kdramadate é que existe um fetiche de raça sendo comercializado aqui. Existe um interesse por esse tipo de abordagem. O que ele está vendendo é realmente isso. É a soma de uma fantasia com um estereótipo, que é, no final das contas, esse fetiche.” A pesquisadora chama atenção para o impacto direto desse tipo de consumo na comunidade coreana brasileira. “O que vale só é a raça. São os traços e os fenótipos de raça, e não quem a pessoa é. E esse é o efeito direto que causa, por exemplo, na comunidade coreana brasileira que está aqui. Eles deixam de ser pessoas e passam a ser apenas a raça, passam a ser apenas a etnia.” Site que vende encontro com coreanos em SP e promete ser 'igual aos doramas' entra na mira do Consulado da Coreia do Sul Reprodução Ela detalha que esse processo se encaixa no fenômeno conhecido como "yellow fever". “O fetiche de raça contra pessoas amarelas é acionado muito pelo 'yellow fever', que é essa mania, essa 'febre' por tudo relacionado ao entendimento dos fenótipos amarelos. A pessoa diz: ‘Eu não quero namorado. Eu quero um cara de olho puxado’.” “Então você pega aquela fantasia criada através do drama, pega aquele personagem, e você joga aquela fantasia num totem de raça. Não importa quem a pessoa é. Só importa o que ela aparenta ser. Só importa a carcaça.” Mazur também afirmou que o caso do site se agrava porque o criador não é coreano, e sim japonês. “É um japonês que está se utilizando da ascensão da onda coreana, desses ideais que estão sendo vendidos. Aí ele coloca lá no site palavras em coreano e até palavras redundantes. E você vê que ele faz esse reforço da etnia, porque é o que vende.” E complementa: “Ele nos mostra que existe um problema na forma como estamos consumindo esses produtos sul-coreanos e como o fetiche de raça se tornou um elemento central disso tudo aqui. Quando você torna pessoas amarelas, pessoas racializadas, em totens de fantasias, é um totem de uma fantasia que você tem de uma ficção que você consumiu.” Site que vende encontros 'iguais aos doramas' Pacotes oferecidos por site de encontros com coreanos Reprodução “Reviva a magia dos K-dramas com seu oppa. Passeios por cenas icônicas e experiências inesquecíveis, em um clima romântico em SP. Sessão de fotos estilo dorama. Oppa sussura frases de doramas famosos. Viva sua fantasia K-drama". É assim que o site Kdramadate, no ar há pelo menos dois meses, se apresenta ao vender encontros em São Paulo com coreanos, prometendo passeios românticos no estilo dos "doramas”, termo da língua japonesa que se popularizou no Brasil para se referir às séries asiáticas, principalmente as produzidas na Coreia do Sul. A oferta de comercialização desses encontros chegou até o Consulado Geral da República da Coreia do Sul, em São Paulo, e à Associação Brasileira dos Coreanos, que veem com preocupação o serviço oferecido, principalmente por usar os dramas coreanos como o grande atrativo e pelo fato de o responsável pelo site tentar contratar jovens coreanos para o "projeto" (veja mais abaixo). O g1 e a TV Globo entraram em contato com o advogado que defende Rikito Morikawa, de 23 anos, nascido em Hiroshima e responsável pelo site. O defensor disse que não tem contato com o cliente há cerca de dois meses, quando o rapaz disse que ia embora para o Japão e comentou que “trabalhava como namorado de aluguel com passeio em parques e motéis”. Sobre convites a coreanos, o advogado disse que não tem informações sobre o caso. A plataforma oferece quatro pacotes: experiência íntima em um motel ou em casa, passeio em cafeterias do Bom Retiro ou da Avenida Paulista, jantar em uma churrascaria coreana tradicional e passeio no Parque Ibirapuera. Também promete sussurrar frases de séries famosas e sessão de fotos no estilo das séries. Tirando o pacote da experência íntima, o site informa que os passeios com o "oppa" acontecem em locais públicos, como Liberdade, Bom Retiro e Parque Ibirapuera, e podem ser reservados pelo WhatsApp. 🔍Oppa é uma palavra em coreano usada por mulheres para se referirem a um homem mais velho, geralmente irmão, amigo próximo ou namorado. Com a popularização das séries, o termo passou a ser associado também a um homem coreano visto como carinhoso, protetor ou romântico. Há a informação de que o pagamento pode ser feito por PIX, cartão de crédito, débito e transferência bancária, mas não são divulgados os valores. Um print enviado como denúncia ao consulado revela uma conversa de uma potencial cliente com o responsável pelo site, que informou que o valor de uma hora de encontro íntimo custava R$ 70 e três horas, R$ 170. O site usa diversas fotos de um casal fazendo os passeios. Também há relatos de possíveis clientes que compraram os encontros. "Sempre sonhei em viver uma cena de dorama e finalmente consegui! Fiz o tour pelos cafés coreanos no Bom Retiro e parecia que eu estava dentro de uma série", diz um suposto depoimento publicado. O g1 e a TV Globo apuraram que as imagens de casal usadas na divulgação são as mesmas que aparecem no perfil Oh My Oppa, no Instagram, que se apresentava como serviço de guia turístico na Coreia do Sul. O site está fora do ar, e as últimas postagens do perfil nas redes sociais foram feitas em 2020. Site que vende encontros iguais 'aos doramas' entra na mira do Consulado da Coreia do Sul Arquivo Pessoal Alerta para exploração sexual A Associação Brasileira dos Coreanos e Consulado Geral da República da Coreia do Sul passaram a investigar o site e seu responsável. O consulado emitiu o primeiro alerta à comunidade em 23 de outubro deste ano pedindo que possíveis vítimas de estelionato entrassem em contato. O segundo alerta, emitido em 31 de outubro, já ressalta que, após depoimentos e provas colhidas pelo órgão, foi constatado de que não se tratava de golpe, mas envolvia crime de exploração sexual (leia os alertas abaixo). Segundo o presidente da Associação Brasileiros dos Coreanos, Bruno Kim, as informações sobre o site chegaram através de amigos e admiradores da cultura coreana. "A comunidade de fãs costuma ser muito unida, e o assunto rapidamente ganhou destaque nas redes sociais. E ao verificarmos o site, percebemos que, além de utilizar referências culturais para atrair interessados, havia inconsistências claras nas informações apresentadas. Por isso, acionamos imediatamente o Consulado Geral da República da Coreia e, em conjunto, as autoridades competentes." Dois comunicados foram emitidos pelo Consulado Geral da Coreia do Sul nas redes sociais Reprodução/Instagram Ainda conforme Bruno, ele e Rafael Kang, advogado criminal do Consulado Geral da Coreia do Sul, foram até o endereço divulgado pelo Kdramadate como sendo sua sede e constataram que se tratava de uma utilização indevida do endereço do Centro Cultural de Hiroshima. O Centro Cultural de Hiroshima, então, teria enviado uma notificação extrajudicial para Rikito, que retirou o endereço do site e colocou outro, que indica que a empresa fica na Vila Carrão, na Zona Leste. Rafael afirmou ao g1 que ainda não se sabe se mulheres contrataram os encontros, mas chegou a informação de que ao menos dez jovens descendentes de coreanos foram convidados por Rikito para trabalhar com ele nos serviços oferecidos no Kdramadate, entre eles encontros íntimos em motéis. "Após a primeira nota que o Consulado emitiu, começaram a chegar informações da própria comunidade coreana. A pessoa que se apresenta como Rikito teria convidado alguns jovens da comunidade. Os jovens escolhidos teriam um perfil atrativo para as brasileiras que gostam da cultura, que remete aos artores coreanos, estilo de roupa, cabelo", afirmou Rafael. A proposta foi feita via mensagens no Instagram e no WhatsApp, mas também houve ligação telefônica. Rikito teria explicado que poderia oferecer serviços sexuais no valor de R$ 700. "Para os jovens coreanos, não fazia sentido em trabalhar com algo assim. Logo, não sabem dizer se algum coreano teria aceito, mas sabem que outros jovens toparam a proposta." Consulado da Coreia do Sul e Associação Brasileira dos Coreanos apontam indícios de exploração sexual após o responsável pelo site, um jovem japonês, convidar coreanos solteiros para um 'projeto' entre as mulheres fãs da cultura e os rapazes Arquivo Pessoal Segundo Nadia Aluz, delegada de polícia titular da 2ª Delegacia de Defesa da Mulher da capital, em São Paulo, prostituição é o ato de oferecer o serviço sexual, e é um ato legalizado no Brasil, desde que praticado por adultos. Já a exploração sexual é ilegal e envolve a comercialização do serviço sexual prestado por outra pessoa, seja esta maior ou menor de idade. "Enquanto a prostituição é uma atividade que permite até o recolhimento de contribuição para o INSS, a exploração sexual é crime, e deve ser investigada e punida", explicou. Bruno Kim ressalta que, nos últimos anos, o sucesso do K-pop e dos K-dramas ampliou de forma significativa a visibilidade da cultura coreana no Brasil. Porém, com esse interesse crescente, "passaram a surgir iniciativas que exploram esse fascínio de maneira questionável, desde sites que prometem encontros com coreanos até anúncios de shows e serviços que nunca se realizam". "Como presidente da Associação Brasileira dos Coreanos, tenho profundo zelo pela reputação da comunidade coreana no Brasil. É essencial preservar a integridade cultural e a confiança construída ao longo de décadas desde que chegamos no Brasil em 1963, garantindo que situações como essa não se repitam", ressaltou. O advogado do consulado, Rafael Kang, também ressaltou que, até o momento, eles e a associação estão conversando com as pessoas que receberam a oferta e devem levar as apurações às autoridades policiais e ao Ministério Público. Em nota, a Polícia Civil informou que ainda não foram localizados registros de denúncias contra a empresa no âmbito criminal. O Ministério Público também confirmou que não tem informação sobre o caso. Quem é Rikito? No site Kdramadate, o responsável pelos encontros se apresenta como Rick, "modelo internacional, com raízes que misturam o charme coreano e japonês, fluente em 4 idiomas, apaixonado pela cultura do Brasil". Diz também que, em São Paulo, "transporta a magia dos doramas para a vida real". Já nas suas redes sociais, com 12 mil seguidores, tem na descrição que ele é um "oppa apaixonado pelo Brasil" com "experiências únicas em São Paulo". Também se diz especialista em marketing e fundador de duas empresas. O site Kdramadate não é citado, e a última postagem dele nas redes é de setembro deste ano. Rikito Morikawa, de 23 anos Reprodução/Instagram A TV Globo apurou que foi publicado no Diário Oficial da União, em 5 de setembro deste ano, que a Coordenadoria-Geral de Imigração Laboral decidiu cancelar a autorização de residência de Rikito Morikawa. A medida foi publicada pela coordenadora-substituta responsável pelo setor. Segundo o documento, o cancelamento ocorreu porque deixou de existir o motivo que justificou a permanência de Rikito no país. Essa decisão segue a regra prevista no Decreto nº 9.199/2017. Um dos pacotes do site Kdramadate oferece passeio no Parque Ibirapuera Reprodução